domingo, 5 de abril de 2009

A vida e a avenida

 
Continuando a linha “coisas que vi faz tempo mas só agora tive saco de escrever sobre”, resolvi falar de Avenida Dropsie, que vi pela terceira vez no sábado retrasado.

O prédio

Avenida Dropsie é uma peça montada pela Sutil Companhia de Teatro e baseada livremente nas graphic novels do grande Will Eisner. Em vez de adaptar uma história só, o roteirista e diretor Felipe Hirsch pegou episódios de obras como Avenida Dropsie, O Cortiço, Nova York – A Grande Cidade, Pequenos Milagres, A Life Force e sabe-se lá quais outras, e misturou tudo numa história em que personagens viram coadjuvantes perante o elemento que os une – a avenida.

A avenida, entenda-se, é metáfora da cidade, e está representada, principalmente, pelo belíssimo edifício de dez metros de altura, três andares e muitas janelas no fundo do palco, único cenário do espetáculo. É dali que os moradores da Avenida Dropsie, em alguma década indefinida do começo do século passado, observam os bêbados, os mendigos, os apressados, os enamorados, enfim, os muitos tipos da cidade grande que Eisner tão bem representava em seus livros.

Ao longo de quase duas horas de peça, esses personagens – a maioria sem nome – vêm e voltam em historietas ora engraçadas, ora dramáticas, ora curiosas, ora estranhas. Todas curtas, com duração de minutos, mas eternas enquanto duram. Como em uma cidade de verdade.

O roteiro, bem amarrado, não deixa o espetáculo ficar efêmero por falta de uma trama principal. E faz bom uso dos recursos técnicos para manter tudo interessante. Entre o público e o palco, uma tela transparente recebe a projeção de balões de fala sobre os personagens, como nas graphic novels, e também de animações que separam os capítulos da peça, se é que assim eles podem ser chamados. A certo ponto, chove no palco, e os atores, encarnando personagens diversos, correm afobados tentando escapar da água.

Tudo isso é pontuado pela narração afável de Gianfrancesco Guarnieri, com seu notável sotaque italiano casando perfeitamente com a voz de velhinho que a idade lhe trazia na época da gravação. Gianfrancesco morreu em 2006, ano de estréia da peça, e reencontrá-lo agora em 2009 é um prazer saudável, principalmente para quem teve a infância marcada pela atuação do homem como o Seu Orlando do seriado Mundo da Lua.

As pessoas

Essa foi a terceira vez que vi Avenida Dropsie. Assisti pela primeira vez na estréia, em 2006, junto às cerca de 40 mil pessoas que viram a peça no Teatro Popular do SESI. No mesmo ano, arrisquei minha pele andando por Santo Amaro à noite só pra rever o espetáculo no Teatro Alfa. E agora, com ela de volta ao SESI, tão perto de tudo, não poderia deixar de assistir novamente.

Tecnicamente, não digo que fica melhor a cada vez que assisto porque a primeira versão, que tinha Magali Biff no elenco, continua imbatível. Mas toda vez que vejo Avenida Dropsie sinto uma certa paz de espírito parecida com a que sentia quando era criança e via aqueles filmes infanto-juvenis dos anos 80, como Os Goonies e História Sem Fim.

É engraçado notar que essa sensação não vem da peça em si, pois a linguagem de Avenida Dropsie não é infantil. A visão mostrada é, pelo contrário, a de alguém com muita idade, que já conhece aquela cidade tão a fundo que se despe de vaidades para falar sobre ela. Mas que nem por isso deixa de falar com carinho, com humor.

Will Eisner era mesmo um gênio, por saber narrar uma história assim, e Felipe Hirsch e sua trupe são outros, por saber adaptar esse estilo tão bem.

Eu não sei se Avenida Dropsie volta a entrar em cartaz (na teoria, a apresentação de ontem, dia 4, era a última de todas). Se voltar, peça demissão de seu emprego, perca o vestibular, venda um rim, mas não deixe de ver. Não importa quantas continuações façam para The Spirit, Avenida Dropsie é a adaptação definitiva de uma obra de Will Eisner.

A chuva (insira aqui sua piada maldosa sobre São Paulo)

Um comentário:

Silvinha disse...

eba! voltou com a corda toda!